quinta-feira, 3 de março de 2011

Mulher de cordas

foto Sebastião Salgado
Ele a destroça todos os dias. Pela madrugada, pega seus ossos, os desmonta, um por um, a tíbia, o tarso, o fêmur, o púbis. Gosta de ver a coluna vertebral dela exposta, de alguma forma ele fica excitado ao ver aquele monte de pequenos fios pendurados no nada, expostos, tensos. Imagina como deve ser ver a eletricidade saltitando em cada feixe a cada vez que toca os pequenos fios que irão se juntar para formar os nervos, cordas tensas que movimentam o mundo. Imagina-a como um violoncelo, ele toca num fio, ela grita em dor maior. Sim, ela é uma orquestra inteira feita de músculos, ossos e nervos, reagindo  a cada movimento de sua batuta que ele agita apenas para vê-la convulsionar. E assim ele ocupa suas horas vazias, entre uma pauta e outra ele brinca com as pequenas notas pretas musicais que ela produz ao movimento de seus braços. E ela ali, passiva, dependurada pelo escalpo, o corpo pendente, os olhos brilhantes, destroçada do púbis ao calcâneo.  O tórax? O ventre? Ele não tem coragem de mexer, vá que de alguma costela surja algum outro ser, melhor deixar as costelas intactas, o ventre seco. Esta coisa de peito, tórax, abdome, não é para ele. ` Muita respiração, muita nutrição` ele pensa, `o ar é imponderável, os alimentos digeríveis´. Depois como que ela vai poder emitir sons se desmontar o pulmão? Como ela vai sobreviver se desmontar o ventre?´  Melhor brincar apenas com os nervos da coluna vertebral e os ossos abaixo do púbis´. Assim ele ensaia, tomando o cuidado de não esgotar a vitalidade, apenas de tempos em tempos montar e desmontar o arcabouço ósseo que a sustenta para quebrar o silêncio absoluto que vara suas incontáveis e monótonas  madrugadas, quando calam-se os estalares dos dedos na mesinha das partituras.  É bom ter um brinquedo de ossos, coxas e músculos para ter música à noite, sem o compromisso de acompanhar o rítmo do dia, apenas tocar Carmina Burana todas as madrugadas com os nervos da medula espinhal de uma mulher que respira.

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