Pequena fábula
Foi estranho. Momento antes de ouvir o sino dos duendes, me ardia algo no estômago, devia ser a irritação da espera infundada misturada com o guizado de monstro que eu comera em pé mesmo, entre um instestino e outro. Tem horas que são estranhas, parecem silenciosas e calmas, mas escondem o burburinho de uma multidão em cada silencioso segundo onde a confusão espreita pelas dobras do tapete do qual foi varrida para baixo. Era um destes momentos assim. Eu disse:
- Mas que merda! Estou aqui parada faz mais de meia hora e não podemos chamar a Porca, onde está a Gazela? Porque não podemos fazer sem ela?
A Gazela era altiva, diva de confiança do grande burro, sem ela o espetáculo não podia acontecer. Foi neste exato momento que os dois duendes entraram.
- Não vamos mais extirpar cisticercos da Dona Porca, um veado foi baleado por alguém que limpava a arma, bala perdida, perdeu muito sangue e se retorce de dor.
- Subam-no, correndo, pois senão não há tempo -Falei automaticamente-Tiro de caçador em veado é algo que não se pensa muito, apenas se resolve.
- Mas Coruja, não podemos fazer nada sem a Gazela, ela fica brava, nos espreme embaixo dos cascos e nos excomunga com promessas de resolução de milhões de ascos em toda a floresta, nos manda esvaziar o urinol dos elefantes e dobrar todas as peles das cobras recém trocadas, depois de limpar os cascos dos burros com bicheira, disseram as duas gatas siamesas que já estavam exaustas só de pensar na função.
- Foda-se a Gazela, o veado não pode morrer e, além de desfilar com seus casquinhos lustrados e com as tabuinhas, que mais que ela faz? Quem vocês preferem enervar? Eu ou ela? Ou o Grande Mago?
As duas gatas se olharam sem muita alternativa e começaram a mover os tachos de unguentos para lá e para cá.
Nesse meio tempo um Orango-tango e duas Burras de carga entraram caverna a dentro com o pobre veado desfalecido.Eu olhei e pensei: Lascou!
Enquanto tentava desesperadamente passar um bambu pela traqueia do veado para insuflar o sopro da vida com o fole cheio de absinto em vapor, chega a gazela, saltitando em seus casquinhos bem afilados.
- Quem mandou este veado entrar aqui na caverna? Quem mandou? Como que ele está aqui sem a minha ordem? Gatas, vocês me pagam!!!
Olhou para as tabuinhas marcadas com seus afiados e lustrados casquinhos e disse. Está aqui! Duas marcas para o Zenit O grande Mestre Burro disse que não era para entrar nenhum animal sem a marca das patas nas tabuinhas além da hora do Zenit, como que eu faço agora? Como que ele vai marcar sua pata se está já estrebuchando? E se ele bater as patas antes de eu conseguir que alguém marque seu couro? Como que vai ser? Depois de morto não tem tatuagem!
Eu suava tentando achar aquele túnel de carne para enfiar o bambu e aquela quadrupede crocitando que nem uma papagaia que cheirou pólen de papoula me torrando a paciência.
Dona Gazela, faça, por favor, uma coisa útil, vai lá e chama os vaga-lumens, não estou enxergando nada.
Nisso olho para o pobre veadinho que da duas piscadas envia um olhar de súplica e a luz se apaga dos olhos.
- Parou! Grito para os duendes.
O maior se bota a golpe de faca e abre a lateral do peito do veado expondo o coração, apertando-o na mão vigorosamente o outro enfia a mão pelo buraco e se agarra na aorta do veadinho
- Hérnia diafragmática, o tiro perfurou o diafragma e o intestino ta comprimindo o coração. Acho que pegou o fígado também!
- Ele vai morrer e eu sem minhas marcas nas tabuinhas, como explicarei ao grande Burro Crata? Isso não poderia ter acontecido!
-Gazela, olha aqui, ele não morreu!-Rosnou entre os dentes o duende Um- Olha aqui, uma coisa mais bonita que as tuas plaquinhas, um coração batendo!
Neste momento já tinha conseguido enfiar a cânula de bambu goela a dentro e já borbulhava a panela com absinto fervendo. O coração batia forte na mão do Duende Um, enquanto Dois, com a adaga curva, abria um grande U na barriga do pobre animal que estava estirado com as patas para cima, tentando descobrir onde estava o sangramento. O empenho dos duendes era contagiante, nunca havia visto dois pequenos tão ágeis e sincronizados, os olhos brilhavam de felicidade com a possibilidade de manter o coração do serzinho desconhecido batendo. O tiro tinha perfurado o fígado e o sangue escorria por uma canaleta na mesa de pedra, era coletado em grandes tachos onde entravam por pequenos tubos de bambu que voltavam novamente para dentro do pobre e ferido animal.
A gazela ainda inconformada batia seus cascos para lá e para cá. E se ele morrer? O que gravarei no pergaminho?
- Gazela, vai lá e chama a Dona Crotalus, para que eu possa fazer com que o sangue não coagule.
- Agora não posso, tenho que anotar quanto de sangue saiu e quanto entrou...
Dois, irritado, chama ela novamente.
- Gazela, olha aqui, o coração batendo! Sem sangue ele para de bater aí tudo termina. Já havias visto? Não existe coisa mais bonita que a vida, olha como se mexe, como pulsa, é aqui que está a força motriz da vida-fala ele segurando com cuidado a frenética víscera que lutava desesperadamente para continuar bombeando vida por todo o corpo- É a partir daqui que tudo se move, este é o milagre do Grande Mago, o movimento que propulsiona o mundo, uma batida depois da outra, toda a vida por isso é preciosa, pois ela carrega a força do movimento.
- Não tenho tempo para estas besteiras, é só mais um veadinho baleado, tenho que escrever algo no pergaminho antes que o sangue acabe por coagular e ele morra, aí a posição das estrelas estará diferente do reflexo das marcas na tábua, o Grande Burro me trucidará, eu preciso escrever alguma coisa.
Um diz:
- Escreve aí Gazela, "Veado ferido por caçador, porém morto por uma gazela idiota a serviço do Burro Crata'' e vê se deixa a gente trabalhar!